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Campo Alegre de Lourdes (BA)
Nelita Pereira dos Passos, agricultora da Comunidade Carolino, em Campo Alegre de Lourdes (BA), tem planos ousados para os próximos meses. Ela pretende investir na ampliação da área do seu quintal produtivo para atender ao crescimento da clientela.
A ideia é ocupar um terreno, ainda sem irrigação, contínuo ao que já produz hortaliças e algumas frutas. “Nós queremos ampliar para poder plantar mais, fazer os canteiros para produzir mais coentro e tomates, que já estou com uns ali no ponto de mudança e não tenho espaço.” Mais espaço plantado significa mais produtos para vender e, claro, mais renda para família.
A alguns poucos quilômetros dali, no Sítio Tanque, Cármen Lúcia e o marido Antônio Damaceno esperavam sorridentes a equipe da Marco Zero para o café da manhã. No cardápio, uma reforçada panela de mocotó com bucho de bode que, além de garantir energia para o dia de trabalho puxado, era uma espécie de símbolo de fartura, garantida pela boa produtividade do quintal por trás da casa. No terreno de cerca de um hectare, dividido em uma área irrigada e uma área de sequeiro, o casal planta de tudo um pouco (são cerca de 40 produtos diferentes) além de criar cabras e galinhas.
Nas duas casas não havia sinal de ostentação, longe disso. Mas em ambas, alguns detalhes mostravam que a vida estava melhorando e, como vocês poderão constatar ao longo da reportagem, não se tratava de casos isolados. Em uma rápida olhada pelas duas cozinhas, por exemplo, era possível ver todo tipo de eletrodoméstico, do liquidificador ao air fryer. “Só não tenho cafeteira porque gosto do café passado na hora”, brinca Lúcia com um sorriso de satisfação como que comemorando os “pequenos luxos” que conquistou.
Campo Alegre de Lourdes fica no extremo norte da Bahia, divisa com o Piauí. O censo demográfico de 2022 informa uma população de 30.671 pessoas. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, existem no município 4.693 estabelecimentos agropecuários caracterizados como agricultura familiar, o que corresponde a 89% do total (5.260). Deste total, 83% possuem cisternas.
Mas nem sempre foi assim. Há menos de três anos, Nelita, o marido Manuel e o restante da família viviam apenas com os recursos dos programas sociais do governo e com o que conseguiam colher da lavoura de subsistência plantada no período de chuva. “Até então, a gente não mexia com nada disso. Vivíamos do que conseguíamos. A gente só produzia mesmo para o consumo de casa, que era o milho, o feijão e umas galinhas”.
De certa forma, era o mesmo com Lúcia e Damaceno. Há uns quatro anos, o casal não tinha renda fixa e nem um quintal tão diverso e produtivo. Com isso, a economia doméstica dependia dos programas governamentais, da “boa vontade” das chuvas e do incerto comércio “na rua”. “Era muito ruim você plantar sem ter a garantia de que iria conseguir vender”, lembra Damaceno.
A transformação na vida das duas famílias – e na de dezenas de outras do município – foi a conjunção de, pelo menos, dois fatores estruturantes. Ambos resultado de muita articulação, mobilização e luta a partir da organização das agricultoras e agricultores com o apoio da sociedade civil.
O primeiro fator transformador, surgido bem antes de Nelita ou Lúcia pensarem em ter seus próprios quintais produtivos, foi a consolidação do conceito de “Convivência com o Semiárido”, muito em consequência da mobilização feita pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) a partir do final da década de 1990 e que orientou diversas políticas públicas abrangentes. Você pode acompanhar muitos aspectos dessa revolução silenciosa que acontece no semiárido nordestino lendo as outras reportagens já publicadas da série A Reinvenção do Nordeste.
Para se ter ideia de como as estratégias de convivência com o semiárido causaram impactos tanto econômico quanto social basta ver o levantamento feito por Denis Monteiro na sua tese de doutorado em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ): Gente é pra brilhar: Interpretação do desenvolvimento de comunidades camponesas do Sertão do São Francisco.
De acordo com o estudo feito por Denis, em 1991, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município de Campo Alegre de Lourdes era 0,273, passando a 0,365 em 2000, e chegando a 0,557 em 2010 (o último disponível). “Apesar de ainda baixo, sua nítida evolução indica ter havido mudanças positivas muito significativas desde o início dos anos 1990”, concluiu.
O que mudou
A grande seca que ocorreu no semiárido brasileiro entre 1979 e 1983 deixou marcas profundas em Campo Alegre de Lourdes. O teólogo Roberto Malvezzi, assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), morou na cidade nesse período. “Vi o flagelo que ficou retratado na música de Luiz Gonzaga, nos romances da Raquel de Queiroz, de Graciliano, na poesia de João Cabral de Melo Neto ou na pintura de Portinari. Todos aqueles fenômenos de fome, de sede, de migração intensa, mortalidade infantil e depois o saque”. Campo Alegre está a 120 quilômetros das margens do São Francisco. “Como não tem rios ou nascentes, ou você tinha a água da chuva ou não tinha nada. Isso naquele tempo, hoje tem uma adutora”, lembra Malvezzi.
A última grande seca na região aconteceu entre 2012 e 2017. A carta do IX Encontro Nacional da Articulação do Semiárido (ASA), de novembro de 2016, afirmou que: “Vivemos hoje o quinto ano de uma estiagem ainda mais severa e nenhum ser humano teve sua vida ceifada pelos efeitos da seca”.
O que mudou? Segundo Denis Monteiro, “as inovações no manejo dos agroecossistemas, as políticas sociais e as rendas de pluriatividade conferiram aos agroecossistemas maior capacidade de resistir aos efeitos da grande seca entre 2012 e 2017. A seca foi também um alerta às famílias sobre a importância de seguir investindo na estocagem de forragem e água. Muitas infraestruturas foram construídas justamente nos anos mais secos, com as políticas públicas em execução. As inovações permitiram uma rápida recuperação após os bons invernos a partir de 2018”.
O segundo fator, pelo menos em Campo Alegre de Lourdes, é bem mais recente. A maior apropriação da riqueza produzida a partir das tecnologias sociais de convivência com o semiárido foi possível pela inserção das famílias em iniciativas de venda direta aos consumidores, associada ao apoio técnico qualificado, ao engajamento em associações e cooperativas que comercializam a produção das comunidades e a integração a eventos onde a produção é vendida e onde se forma clientela como, por exemplo, as feiras agroecológicas.
Lá, especificamente, os mercados institucionais começam a ganhar mais força a partir de 2021, quando aconteceu a primeira tentativa de acessar, de forma articulada e coletiva, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
“Isso aconteceu de forma gradativa. Em 2021, o valor foi muito pequeno, mesmo assim, as famílias não desanimaram. Em 2022, a gente já foi para um valor bem mais interessante, passando para quase R$ 600 mil. Agora, em 2024, a gente já tem contratos firmados de quase um milhão de reais”, explica Francisco José da Silva, conhecido por todos com Franzé, que é assessor técnico do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP) nos territórios de três municípios da região: Remanso, Campo Alegre de Lurdes e Pilão Arcado.
Criado pela Lei nº 11.947, de 16/6/2009, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) consiste no repasse de recursos financeiros federais para o atendimento de estudantes matriculados em todas as etapas e modalidades da educação básica nas redes municipal, distrital, estadual e federal e nas entidades qualificadas como filantrópicas ou por elas mantidas, nas escolas confessionais mantidas por entidade sem fins lucrativos e nas escolas comunitárias conveniadas com os estados, o Distrito Federal e os municípios, com o objetivo de contribuir para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que cubram as suas necessidades nutricionais durante o período letivo.
Fundamentado pela diretriz de emprego da alimentação saudável e adequada e o apoio ao desenvolvimento sustentável, com valorização dos gêneros alimentícios produzidos em âmbito local, a lei estabelece que, no mínimo, 30% do valor dos recursos federais do PNAE repassados pelo FNDE deve ser investido na compra direta de produtos da agricultura familiar, medida que estimula o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades.
O mesmo dispositivo estabelece, ainda, que sejam priorizados os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas, as comunidades quilombolas e os grupos formais e informais de mulheres. A novidade, trazida pela Lei nº 14.660, em 24 de agosto de 2023, é de que a aquisição dos gêneros, quando comprados de família rural individual, deverá ser feita no nome da mulher, em no mínimo, 50% (cinquenta por cento) do valor adquirido.
O programa ganhou força, passando a ter mais relevância e impacto na vida das pessoas, quando o poder público (a prefeitura de Campo Alegre de Lurdes, no caso), passou a destinar 100%, do que é repassado pelo FNDE, para a compra de produtos da agricultura familiar, indo muito além dos 30% determinado por lei. Além disso, a prefeitura tem trabalhado em parceria com a sociedade civil organizada no mapeamento e definição de um preço justo para o que é produzido no município. O resultado desse esforço subsidia a elaboração da chamada pública, instrumento legal que define das famílias agricultoras e todos os parâmetros para a elaboração dos contratos.
Para ver como isso tem sido um diferencial importante, é só fazer um contraponto com o município vizinho de Pilão Arcado. Segundo Franzé, por lá o processo está muito mais difícil. “Saiu a chamada pública com produtos que não são de produção da região, totalmente fora de contexto e com preços abaixo do mercado. Ou seja, foi uma chamada pública elaborada sem fazer aqueles primeiros processos: mapeamento e cotação de preço. Então, só pra ter uma ideia, lá eles querem batata-inglesa, um produto que não é de nossa região. E tá lá. Quem vai fornecer? Vão ter que pegar de um atravessador…”
Para Franzé, o que acontece em Pilão Arcado e em outros municípios que sequer cumprem a cota de 30% de compra para o PNAE na agricultura familiar, o problema não é desconhecimento técnico ou da legislação. “Eles têm o conhecimento de que a chamada pública para a compra de produtos da agricultura familiar tem que ser regionalizada. Na verdade, é falta de vontade política”.
Falta vontade política e falta visão administrativa, para dizer o mínimo. “Quando eles (os prefeitos) derem a importância devida a essa política dentro do seu município, eles vão abraçar essa ideia e nunca mais vão largar. Porque é isso, é fazer com que o recurso gire dentro do próprio município, Se ele paga para o agricultor, o agricultor compra no seu comércio”, explica Franzé.
O fato que a entrada no PNAE transformou a vida de muita gente. Atualmente, são 68 famílias que participam do programa no âmbito municipal. O contrato assinado para 2024 prevê o valor anual de R$ 982.874,16 para compras na agricultura familiar. Isso dar um valor médio próximo dos 15 mil reais para cada família participante. São quase R$ 1.250 por mês. “É mais de um salário-mínimo por mês e é melhor do que o Bolsa Família”, calcula Damaceno que, junto com Lúcia, que desde 2022 fornece para o PNAE.
Cármen Lúcia fala de outro motivo de satisfação que não tem relação direta com ganhos materiais: “Nossos filhos passam a ter alimentos saudáveis na escola. Às vezes, minha filha Vitória [de oito anos] diz: ‘mamãe’, vi os mamões que você levou lá na escola”.
Lúcia e Damaceno também fazem parte do grupo reduzido de famílias que vendem para o PNAE do governo estadual da Bahia. Por questões burocráticas, são apenas três pessoas formalmente inscritas que representam algumas outras de suas respectivas comunidades. Elas recebem algo em torno de R$ 11 mil por ano. Leandro Nonato de Lacerda, que mora na comunidade tradicional de Fundo de Pasto Lagoa do Gato, fornece desde 2021 para o PNAE, tanto o municipal quanto para o estadual, é um dos coordenadores do programa. Segundo ele, os benefícios do PNAE vão além das famílias que assinaram contrato. “Acaba beneficiando cerca de 300 famílias indiretamente. Isso porque, quando não temos o produto solicitado para entregar, pedimos aos outros da comunidade”.
Leandro, que é um dos coordenadores do programa, explica que são nove grupos de agricultoras e agricultores, cada um com um representante, que se articulam através do WhatsApp. “A nutricionista (que define o cardápio das escolas municipais) pede o que precisa, geralmente, na sexta-feira, e os representantes organizam a divisão entre os produtores para a entrega nas segundas-feiras”.
Para ele, a vantagem de participar do PNAE é muito grande. Além de oferecer produtos naturais para as escolas, aumenta nossa renda”. Melhorou muito nossa vida. Hoje é a principal fonte de renda de muitas famílias”.
“Nossos filhos passam a ter alimentos saudáveis na escola. Às vezes, minha filha Vitória (de oito anos) diz: ‘papai’, vi os mamões que você levou lá na escola”.
Cármen Lúcia, Sítio Tanque
Bom para todos
A importância do PNAE vai além da questão da garantia de renda para as famílias agricultoras ou o incremento da economia local. É possível elencar uma série de benefícios que essa política pública traz, não só para as pessoas envolvidas diretamente no processo como para a sociedade como um todo:
Conseguir assinar o contrato com a prefeitura e o Governo do Estado para vender a produção para o PNAE foi uma vitória. Mas entregar os produtos na quantidade, qualidade e prazos acordados, tão fundamental para a continuidade do programa, não é uma tarefa fácil para as famílias agricultoras. É aí que entra o apoio técnico.
O SASOP, onde Franzé trabalha, faz parte da Rede de Assistência Técnica e Extensão Rural Nordeste (Rede Ater NE), e tem um papel importante nesse processo. Atualmente, o SASOP atua em quatro municípios do Sertão do São Francisco: Campo Alegre de Lourdes, Remanso, Casa Nova e Pilão Arcado, acompanhando famílias de agricultores/as, pescadoras artesanais e as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto. A atuação em Campo Alegre começou ainda no início da década de 2010, com foco na apicultura, e foi se expandindo e diversificando para a caprinocultura, quintais agroecológicos, beneficiamento de frutas e acesso a mercados.
“Não existiria a participação no PNAE sem o apoio da assessoria técnica. Como a gente iria acessar o programa?”, questiona Antônio Damaceno. Para ele, a assessoria técnica resultou no aumento da produtividade e, o mais importante, a qualidade dos produtos. “A gente vai aprendendo todo dia. Sempre tem algo para melhorar. Na semana passada, por exemplo, aprendi a usar água oxigenada para combater um fungo que dá na laranjeira”.
O sentimento de Nelita é semelhante ao de Damaceno. “Mudou, mudou bastante, porque a gente pegou experiência. Antes, a gente não sabia nem para onde ir. Agora, o pessoal do SASOP está sempre apoiando, ensinando o manejo de tudo”. Desde que começou a receber o apoio, ela conta que passou a aproveitar mais a área do quintal e, assim, pôde ter mais produto para vender: “na verdade, o bom é ter a renda, que antes só produzíamos para comer.”
Há cerca de 30 anos que as comunidades vendem seus produtos na feira da cidade. Só que isso era feito de forma individual, misturado com os demais comerciantes. De forma organizada, dentro do espaço agroecológico, faz apenas uns cinco meses. Desde o ano passado, essa forma de venda direta ao consumidor tem melhorado para um bom número de famílias agricultoras. “Nós estamos no primeiro ano de experiência da feira agroecológica”, explica Franzé, que tem prestado assistência técnica ao grupo.
Desde o ano passado, uma média de 35 famílias (na época de chuva na região, entre dezembro a março, são cerca de 40 famílias), representando cerca de 25 comunidades, passaram a ocupar uma área específica e padronizada no galpão onde a feira funciona aos sábados.
O grupo começa a chegar das comunidades por volta das 5h30 e ficam até meio dia. As famílias que não podem ir, mandam seus produtos pelos vizinhos. Lá vendem de tudo um pouco, sendo mais uma oportunidade de escoar a produção excedente dos seus quintais produtivos. Outros, como a família de Leandro Lacerda, perceberam que podem aumentar os lucros agregando valor aos seus produtos.
“Minha família foca na alimentação. Bolos, doces, galinha caipira, beiju, cafezinho… Tudo feito em fogão agroecológico, que consome menos lenha, faz menos fumaça e foi construído através do Programa Pró-Semiárido do Governo da Bahia, há cerca de dois anos.”
Leia todas as reportagens da série A reinvenção do Nordeste publicadas pelo portal Marco Zero.